PARIS - Hoje é dia de Santo Antônio de Pádua, o santo que dá nome a meu porteiro predileto, o Antoine. Mais um motivo pra felicitá-lo, além do título conquistado pelo futebol francês na Copa das Confederações.
Antoine, porém, não é dessas pessoas que se contentam com afetos. Bom francês, ele gosta mesmo é de uma boa discussão. Júlio César já dizia que, em suas andanças de conquistador de mundos, jamais conheceu povo mais polêmico que o gaulês. Antoine é assim: adora uma controvérsia. A tal ponto que, quando pressente que vou concordar com ele, meu implacável interlocutor entra em pânico, pensando: bom, se ele está aprovando o que digo, é sinal de que eu devo estar errado. E muda, rápido, de idéia.
Antoine, agora, vive pegando no meu pé por causa do vexame da seleção brasileira, que perdeu de todo mundo lá na Ásia. Até da Austrália.
Respondo que meu esporte, há tempos, deixou de ser o futebol; agora, eu sou tênis. Ele me chama de trânsfuga. Tanto quanto você, mon cher, que, antigamente, só queria saber de tênis. Era Lacoste pra lá, Borotra pra cá.
Tanto falaste, amigo, que resolvi aderir... Renunciei ao futebol. Hoje, vivo alegre e contente com meu idolatrado Guga, o Picasso do tênis.
Antoine ironiza o quanto pode essa história de Kafelnikov comparar Guga a Picasso. Considera a analogia uma afronta à inteligência humana.
- Picasso é um gênio!- grita Antoine, com sua voz rouca de velho tabagista.
Ele fuma 'Gitanes'. E menospreza o coração que Guga desenhou com a raquete na quadra de Roland Garros. Pra ele, uma garatuja. Digo que Guga é tão gênio quanto Picasso. O cara fica injuriado.
- Como! Como! Como!
- Cada um com o seu sopro divino - digo-lhe com uma frieza que não é minha.
Afinal, se Guga desenha mal, Picasso era péssimo tenista. Jamais acertou uma paralela de esquerda, nem uma deixadinha como a de Guga que goteja ao pé da rede, tênue, mínima. Uma obra de arte.
Antoine diz que estou tergiversando. A questão não é Guga versus Picasso.
Estamos discutindo é tênis versus futebol.
- Ora, mon cher, se você não percebe a semelhança entre a arte do tênis e a arte da pintura, entre o pincel e a raquete, então, é melhor eu pegar o meu boné...
- Me desculpe - retruca Antoine - mas tênis, além de não ser uma arte, como a pintura, é apenas um mero passatempo das elites. Prefiro o futebol, que tem cheiro de povo. É o esporte das multidões.
- Mas não se esqueça de uma coisa - contra-ataco eu -, tênis se joga com a mão. E foi com as mãos que o homem criou as obras-primas da civilização. Não me consta que Matisse tenha pintado com os pés o famoso quadro La Fenêtre.
Nem que Baudelaire tenha escrito As Flores do Mal com o pé direito. Por acaso, Picasso pintou Guernica segurando o pincel com o dedão do pé? Vais querer me dizer que Michelangelo criou a Gioconda dando pontapés numa prancheta?
Percebo que, pela primeira vez, Antoine tonteou. Acertei a ponta do queixo dele. Igualzinho àquela cruzada de Guga que quebrou, ao mesmo tempo, o serviço e a castanha de Corretja, no comecinho do terceiro "set".
Agora, não tem mais conversa. Passo a bola a quem de direito: Guga. Um golpe de esquerda e Guga se reinventa na quadra. Aquela bolinha solerte, evasiva, que saía da raquete do espanhol, transfigura-se. Desponta na quadra a panóplia de Guga, cuja raquete enfeitiçada faz da bola um instrumento mágico de sua poética tirania. E, como no milagre dos pães, Guga começa a distribuir pelos quatro cantos da quadra uma vertiginosa multidão de bolas, cada qual com o seu matiz: as paralelas, como sempre, voluptuosas; as cruzadas, pra variar, românticas; os "lobs" são meio cínicos, glaciais; as deixadinhas, delicadas, sutis, quase eróticas; os aces - Deus do céu! -, haverá, no tênis, golpe mais perfurante que um ace de Guga? Enfim, mon cher Antoine, perdão se cometo um crime de lesa-majestade, mas Napoleão Bonaparte tentou conquistar o universo e fracassou.
Hoje, o universo está aos pés de Guga. Melhor dizendo, nas mãos de Guga.
Mãos que manejam o mundo. O Picasso do tênis.
O metrônomo de Guga.
Cada vez mais me convenço de que o cérebro de Guga é regido por um metrônomo especial que raramente entra em pane. Deve estar aí o segredo da solidez mental que o leva a sair incólume dos buracos negros nos quais é lançado, aqui e ali, pelos rivais. Que todos nós temos um relógio interno, disso ninguém mais duvida.
Guga passou por dois testes semelhantes, um contra o marroquino Karim Alami e outro contra o 'azarão' Michael Russell que quase o derrota nas oitavas-de-final de Roland Garros. Nada que tentasse saía certo.
Já o adversário encaixava golpes inimagináveis. Pois, em momento algum, o metrônomo de Guga desandou. Ele não perdeu a cabeça, jamais. Suportou as adversidades com a proverbial paciência de Jó.
Assim é Guga: consistência, contundência, paciência, eficiência, tudo no ritmo certo, como manda seu secreto metrônomo...
Armando Nogueira
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